Tem pessoas que passam por nós sem ficar em nossa história,
não influem em nada e rapidamente são esquecidas; outras, porém, tornam-se
parte do que somos e vivem para sempre em nossa memória. Tenho claramente as
melhores lembranças de minha mãe guardadas no altar do coração. Lembro-me da
primeira professora e eu, acalentado em seu colo, tendo sua mão paciente sobre
a minha, apoiando-me quando a palavra escrita nasceu assim trêmula de meus
dedos. E também me lembro da freira boa, dando-me comida na boca-criança, na
ocasião em que estive no hospital porque um carro me pegou. Ela surgiu do mesmo
modo que desaparecera: do nada. Mistério.
Acontece que, por aí, aparece muito anjo que parece gente,
mas não é. Fato ruim. Contudo, eu nada temo, porque, por outro lado, a vida foi
mostrando para mim que, aqui e ali, espalhadas pelo mundo, existem pessoas que são
anjos.
Há vinte e um anos voltei a morar
em São Paulo e logo conheci dona Nilzete; alma gentil e pacífica. Senhora da
segunda casa à esquerda depois da minha. Não foi difícil perceber que na
calçada de dona Nilzete se localizava o centro do Universo da garotada do
condomínio no qual eu acabara de chegar, pois em seu portão ela e o indócil Seu
Lula, o marido, amor de sua vida, vendiam deliciosos geladinhos de todas as
cores e sabores.
Depois dos geladinhos, vieram doces, salgadinhos e enfim os
picolés de fruta, dos quais eu e outro vizinho, Seu Ricardo, nos tornamos
consumidores frequentes. Uma alegre pausa para descanso e refresco das crianças
que brincavam dia e noite na rua. Eu já não era tão criança, mas continuava
moleque, esticando a infância.
Assim também fiz amizade com as filhas do casal; Adriana,
Daniela e Valéria, a quem chamamos de Léo. Vale dizer que a filha da Adriana, a
pequena Yoko, foi quem me apelidou de Kizzy. Era é família Funiga. O tempo
passou, compartilhamos vivências profundas. Laços se estreitaram. Não apenas
com os Funiga, alguns vizinhos deste condomínio são mais próximos a mim do que
muitos familiares, e não estou falando de distância física.
Seu Lula era uma figura. Fazia-se de durão mas era tão doce
quanto aqueles que vendia; outra criança a brincar no condomínio. Cineasta
amador; dirigiu um curta-metragem com a turma da rua: “A história do papa figo”.
Com Seu Lula, tomei banho na chuva. A propósito, ele e dona Nilzete até já me enfiaram
debaixo de ducha para me curar de um pileque. Certa vez, estávamos no portão
quando, por brincadeira, Seu Lula chamou dona Nilzete de dona menininha. O
apelido pegou. Até hoje eu a chamo assim. Desenvolvi muito afeto por dona menininha.
Com o falecimento de Seu Lula, encerraram-se os doces. As
crianças cresceram. Mas dona Nilzete continuava no portão. Quando eu saia,
quando eu voltava, lá estava dona Nilzete, no portão. Ali não trocávamos apenas
saudações. Dividíamos um cigarro, lembranças, conversas. Para ela, nós, que
crescemos no condomínio, éramos eternas crianças. Suas crianças. Ela dizia:
“Vocês são todos meus filhos”.
Há poucos meses, dona menininha adoeceu. Semana passada,
sonhei com ela. Sonhei que lhe fazia uma sopa quentinha e gostosa com peixe e
legumes. Contei para o Igor e ele me disse: “Então faz a sopa!”. Voei para a cozinha
e a preparei rapidinho, mas com todo o amor e cheio de esperança. Dona Nilzete
adorava peixe. Levei a sopa. Juntei-me a ela num abraço que não tinha pressa de
acabar. Enchi-lhe de beijos. Disse-lhe que ia ficar tudo bem. E também disse: “Eu
te amo, dona menininha”. “Eu também te amo, meu filho”, respondeu ela.
Durante o inverno, dona Nilzete costumava tomar um solzinho
pela manhã e eu me sentava ao seu lado no quentinho gostoso. Muitas vezes eu ia
até ela apenas para beijá-la, atrás daquele carinho de mãe que às vezes me faz
falta.
Ontem, uma vez mais, dona Nilzete se dirigiu ao portão. Mas
desta vez foi diferente. O portão voltou a lhe trazer alegria. Seu Lula estava
lá do outro lado, onde a esperava cheio de luz. E sorrindo foi logo dizendo: “Ah,
dona menininha, dona menininha... Chega de saudade, mamãe! Vem pra cá com o
papai. Sou todo seu. Eu sempre fui”. Olha só! E não é que ela foi mesmo? Dona
Nilzete atravessou para o outro lado. De mãos dadas com o amor, foi-se embora
portão afora.
Esta madrugada, recebi a notícia pela Dani. Logo, Igor e eu, fomos
para a casa de dona Nilzete, abraçar as meninas. Quando as vi, o peito apertou por
elas. Eu já havia passado por aquilo, então sabia o que estavam sentindo. Não é
fácil perder a mãe. Tentei distraí-las, ocupá-las com alguma coisa para que seus
corações respirarem um pouco. Saí sem avisar e voltei com pães e frios. Propus que
fizéssemos lanches para levar ao velório.
Dada hora, saí para fumar. O Igor veio, falou comigo e foi à nossa
casa, preparar uma garrafa de café. Eu ainda estava nervoso quando algo me
chamou a atenção para o portão ausente. Olhei aquela falta por alguns segundos
e senti uma paz seguida de uma saudade prematura. Aquele carinho que eu tanto
gostava, tornei a perder. Estava triste, mas, naquele momento, meu coração se
encheu de alegria. Percebia que a vida novamente havia demonstrado que, aqui e
ali, espalhada no mundo, tem gente que é anjo. Feliz de nós quando o
encontramos.
Portanto, obrigado, dona Nilzete. Agradeço por tê-la
conhecido. Adeus, dona menininha, mãezinha da rua. Vou me lembrar para sempre
da senhora quando me sentar ao Sol nas manhãs frias de inverno, pois com a
lembrança de seu sorriso e de seu beijo terno eu me aquecerei.