Estou de passagem neste mundo,

Mas deixo aqui o registro de minhas palavras.

Eu sou o peregrino do tempo.


terça-feira, 9 de outubro de 2007

E assim seguirá a vida

O menino cresceu olhando aquele quadro na parede da casa de sua avó.
Destacava-se nele bela e convidativa casa de madeira com telhas azuis e chaminé; árvores de muitas cores a ladeavam: vermelhas, púrpuras, amarelas e verdes. Verde grama num bosque sem fim. À esquerda, em primeiro plano, singela cascata jorrava brancas águas espumantes das rochas escuras num riacho azul que passava sinuoso frente à casa. Ao fundo erguia-se a cordilheira de montanhas de um malva de vários tons, borradas na distância por um céu violáceo tirante a vermelho-fogo, por onde cruzavam vapores de nuvens diáfanas de nuances azuladas trespassadas pela luz de divindade inquestionável. Em primeiro plano na cena, um menino conversava com uma senhorinha e tosca cerca os separava, obstruindo um caminho cercado de relvas e flores aqui e ali.
O menino, que cresceu olhando aquele quadro deu-se conta de repente que, apesar de a velha casa de sua avó continuar sendo a mesma, inovadoras reformas haviam alterado sua estrutura original e muita coisa a mais também tinha mudado por ali. Sua mãe e outros parentes, por exemplo, já não existiam mais... E no lúdico e silencioso vazio da madrugada, sentia que também já não era mais um menino, pois a barba há muito aflorava o mento.
Foi então que suas mãos de unhas pretas resolveram empunhar gentilmente a caneta para escrever estas mal traçadas linhas.
Não obstante, fixou o quadro mais uma vez e notou curioso detalhe; aquele quadro exprimia dois triviais desejos do homem: um belo canto para se viver e um encanto de pessoa para se conviver. Entretanto o rapaz do quadro, cuja face não se via porque estava de costas e cobria a cabeça com chapéu, estava separado da casa pelo riacho e da senhorinha pela cerca.
Um enigma surgia de tal quadro; jamais concluiríamos, ao certo, qual das duas personagens morava na casa onírica. Era possível que não fosse nenhuma. E outras mil perguntas brotariam na mente de qualquer um que observasse o quadro. Perguntas que jamais seriam respondidas.
Teríamos, então, que viver satisfeitos com nossas medíocres suposições... ou... quem sabe, poderíamos pintar o quadro de nossas vidas e deixá-lo imortalmente fixado nas paredes do mundo para que outros vejam e tentem supor nossos mistérios (ou os seus) ou nele se inspirem para compor suas próprias obras.

Kizzy Ysatis
Santos, 25 de setembro de 2003