Estou de passagem neste mundo,

Mas deixo aqui o registro de minhas palavras.

Eu sou o peregrino do tempo.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

EIS O MUNDO DE FORA


Escritora se mostra alquimista ao fazer o real virar maravilhoso
Por Kizzy Ysatis


Quem está acostumado com histórias em que todas as coisas se resolvem concretamente no final vai estranhar o romance de Adrienne Myrtes. No mundo real as resoluções são abstratas. Eis o mundo de fora, livro vencedor do Prêmio Petrobrás Cultural, expõe ossos e nervos em um dueto fraterno com o delírio.
      Os protagonistas Irene e Luis são como a dupla do famoso sitcom Will e Grace: a mulher hétero que mora com o melhor amigo gay; só que na realidade o drama se sobrepõe à comédia. Luis acabou de tentar suicídio quando Irene descobre que sua avó padece de uma doença em estado terminal. Ambos decidem viajar e ficar uma semana com a velhinha. E é nessa viagem que conhecemos suas histórias.
    Irene enxerga o realismo do mundo, como ele se apresenta fisicamente, sem a maquiagem que a humanidade criou pra deixá-lo suportável.

“Aprendi a ver a vida por dentro e virar a morte pelo avesso. Daí veio meu talento para ignorar a mistificação do mundo, a possibilidade de castigo divino (...) A descoberta do miolo das coisas, das células e suas organelas foi um tiro sem misericórdia nas tentativas de minha avó de me fazerem temer a deus sobre todas as coisas, de me fazerem ansiar pelo céu e fugir do inferno.”

       Para Irene o coração não é o naipe de copas, é aquele músculo feio cheio de artérias, que não à toa é a imagem na capa do livro desenhada, assim como as ilustrações internas, pela própria autora que também é artista plástica. As imagens engendradas por Myrtes nos remete ao onírico em contraste ao realismo da trama. Irene teme viver o presente e se assusta quando precisa enfrentar o passado, então ela o mastiga.

          “Eu me abandonava pelos cantos até ficar invisível. Deixei o esquecimento dos adultos chover sobre mim para crescer. Mantive-me atenta a eles. A ausência de outras crianças me beneficiou com o silêncio, aprendi a falar pouco e a ouvir o vento, o latido dos cachorros na rua, a chuva durante a noite.”
               
         A princípio Irene parece ser mais profunda. A vejo como uma cebola: cheia de camadas. Tem família, tem infância, tem sorvete de mangaba. Luis tem a ele mesmo, e isso o torna fascinante. Na primeira metade do livro preferi Irene; preferi Luis na segunda, mas no final descobri ambos como uma somatória. Ela se reserva, ele se joga.
     Com Luis a metáfora está feita: ele não tem olhos pra realidade, enxerga o mundo através da artificialidade de suas lentes de contato. Prefere as ilusões que cria. Retira suas lentes quando quer mergulhar para seu próprio universo.

        “A vida é uma mulher velha e feia que sente falta de orgasmos. Na impossibilidade de resistência, porque ela me agarra pela garganta, me disponho a inundá-la com o meu gozo.”

          Luis é legal porque se expõe com naturalidade, é despido de pudores.

                “O sexo dele também cheirava a jasmim, jasmim em botão que explorei com os dedos, pétala por pétala a flor do cu.”

          No começo Luis é uma bala: a gente chupa, chupa, mas quando parece que vai perder o gosto, ele se refaz com mais intensidade. Ama Irene, mas briga com o senso de realidade da amiga, cede ao delírio e se torna o oposto perfeito.

              “Irene diz que nos salvamos pela dor. Apenas a dor é o antídoto para a estupidez humana, Irene parece farmacêutica, xarope. Não estou a fim de receita. Ela precisa aceitar que talvez eu não queira ser salvo, que a danação eterna pode ser meu plano de carreira.”

              “Agimos feito alquimistas que se propõem a transformar ouro em chumbo para se sentirem reais. Precisamos nos convencer de que a realidade é valiosa. De que o delírio é impuro. Dionísio que nos salve da nossa sensatez.”

        Eis o mundo de fora é visceral e perturbador, mas está longe de ser uma leitura pesada. Vem em camadas ora sutis ora explícitas. O mérito está na sensibilidade da autora em reger sua obra com competência. O real é feio, mas a autora é fecunda e sabe dar encanto, deixa tudo mais belo e até divertido. Cada palavra é cuidadosamente escolhida, cada sentença, prodigiosamente executada. Myrtes cria epigramas e aforismos dignos de Wilde, questionamentos shakespearianos; faz uso de recursos poéticos que enriquecem a prosa, assopra ecos e produz aliterações que faria inveja ao mais proeminente simbolista. Irene vê o mundo com olhar clínico, os pensamentos são dela, mas é Adrienne quem segura à caneta.
          Na ficção a mocinha derrota a vilã, enriquece e se casa no mesmo dia. Na vida real algumas coisas se resolvem, outras, não. Eis o mundo de fora é honesto, não forja mentiras nem reforça a esperança de que os sonhos são possíveis, mas também não desaponta nem nos desconforta, pelo contrário, deixa uma sensação libertadora. Não é resignação, apenas exalta a graça da continuidade. Tudo é passageiro, mas o jogo continua. Virão outros desafios. Com o dedo indicador eu escrevo na tela do computador:
Essa é a maravilha de estar vivo.

Título: Eis o mundo de fora
Autora: Adrienne Myrtes
Editora: Ateliê Editorial
Páginas: 168
Quanto: R$ 35,00
Onde comprar: LIVRARIA CULTURA

Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. É também artista plástica. Publicou o livro de contos: A Mulher e o Cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito Editora, 2006), a novela juvenil: A Linda História de Linda em Olinda (Editora Escala educacional, 2007) este último em parceria com o escritor Marcelino Freire e participou, das antologias Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004) e 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum – Literatura de Baixo-Ajuda (Bertrand Brasil, 2007) entre outras. E-mail: adriennemyrtes@hotmail.com