Escritora se mostra alquimista ao fazer o real virar maravilhoso
Por Kizzy Ysatis
Quem
está acostumado com histórias em que todas as coisas se resolvem concretamente
no final vai estranhar o romance de Adrienne Myrtes. No mundo real as
resoluções são abstratas. Eis o mundo de
fora, livro vencedor do Prêmio Petrobrás Cultural, expõe ossos e nervos em
um dueto fraterno com o delírio.
Os protagonistas Irene e Luis
são como a dupla do famoso sitcom Will
e Grace: a mulher hétero que mora com o melhor amigo gay; só que na realidade o
drama se sobrepõe à comédia. Luis acabou de tentar suicídio quando Irene
descobre que sua avó padece de uma doença em estado terminal. Ambos decidem
viajar e ficar uma semana com a velhinha. E é nessa viagem que conhecemos suas
histórias.
Irene enxerga o realismo do
mundo, como ele se apresenta fisicamente, sem a maquiagem que a humanidade
criou pra deixá-lo suportável.
“Aprendi a ver a vida
por dentro e virar a morte pelo avesso. Daí veio meu talento para ignorar a
mistificação do mundo, a possibilidade de castigo divino (...) A descoberta do
miolo das coisas, das células e suas organelas foi um tiro sem misericórdia nas
tentativas de minha avó de me fazerem temer a deus sobre todas as coisas, de me
fazerem ansiar pelo céu e fugir do inferno.”
Para Irene o coração não é o
naipe de copas, é aquele músculo feio cheio de artérias, que não à toa é a
imagem na capa do livro desenhada, assim como as ilustrações internas, pela
própria autora que também é artista plástica. As imagens engendradas por Myrtes
nos remete ao onírico em contraste ao realismo da trama. Irene teme viver o
presente e se assusta quando precisa enfrentar o passado, então ela o mastiga.
“Eu me abandonava pelos cantos até ficar invisível. Deixei o
esquecimento dos adultos chover sobre mim para crescer. Mantive-me atenta a
eles. A ausência de outras crianças me beneficiou com o silêncio, aprendi a
falar pouco e a ouvir o vento, o latido dos cachorros na rua, a chuva durante a
noite.”
A princípio Irene parece ser
mais profunda. A vejo como uma cebola: cheia de camadas. Tem família, tem
infância, tem sorvete de mangaba. Luis tem a ele mesmo, e isso o torna
fascinante. Na primeira metade do livro preferi Irene; preferi Luis na segunda,
mas no final descobri ambos como uma somatória. Ela se reserva, ele se joga.
Com Luis a metáfora está feita:
ele não tem olhos pra realidade, enxerga o mundo através da artificialidade de
suas lentes de contato. Prefere as ilusões que cria. Retira suas lentes quando quer
mergulhar para seu próprio universo.
“A vida é uma mulher velha e feia que sente falta de orgasmos. Na
impossibilidade de resistência, porque ela me agarra pela garganta, me disponho
a inundá-la com o meu gozo.”
Luis é legal porque se expõe com naturalidade, é
despido de pudores.
“O sexo dele
também cheirava a jasmim, jasmim em botão que explorei com os dedos, pétala por
pétala a flor do cu.”
No começo Luis é uma bala: a gente chupa, chupa, mas
quando parece que vai perder o gosto, ele se refaz com mais intensidade. Ama
Irene, mas briga com o senso de realidade da amiga, cede ao delírio e se torna
o oposto perfeito.
“Irene diz que nos salvamos pela dor. Apenas a dor é o antídoto para a
estupidez humana, Irene parece farmacêutica, xarope. Não estou a fim de
receita. Ela precisa aceitar que talvez eu não queira ser salvo, que a danação
eterna pode ser meu plano de carreira.”
“Agimos feito alquimistas que se
propõem a transformar ouro em chumbo para se sentirem reais. Precisamos nos
convencer de que a realidade é valiosa. De que o delírio é impuro. Dionísio que
nos salve da nossa sensatez.”
Eis o mundo de fora é visceral e perturbador, mas está longe de ser
uma leitura pesada. Vem em camadas ora sutis ora explícitas. O mérito está na
sensibilidade da autora em reger sua obra com competência. O real é feio, mas a
autora é fecunda e sabe dar encanto, deixa tudo mais belo e até divertido. Cada
palavra é cuidadosamente escolhida, cada sentença, prodigiosamente executada. Myrtes
cria epigramas e aforismos dignos de Wilde, questionamentos shakespearianos;
faz uso de recursos poéticos que enriquecem a prosa, assopra ecos e produz aliterações que faria inveja ao mais proeminente simbolista. Irene vê o mundo com olhar clínico,
os pensamentos são dela, mas é Adrienne quem segura à caneta.
Na ficção a mocinha derrota a vilã,
enriquece e se casa no mesmo dia. Na vida real algumas coisas se resolvem, outras,
não. Eis o mundo de fora é honesto, não
forja mentiras nem reforça a esperança de que os sonhos são possíveis, mas também
não desaponta nem nos desconforta, pelo contrário, deixa uma sensação libertadora.
Não é resignação, apenas exalta a graça da continuidade. Tudo é passageiro, mas
o jogo continua. Virão outros desafios. Com o dedo indicador eu escrevo na tela
do computador:
Essa é a maravilha de
estar vivo.
Título: Eis o mundo de fora
Autora: Adrienne Myrtes
Editora: Ateliê Editorial
Páginas: 168
Quanto: R$ 35,00
Onde comprar: LIVRARIA CULTURA
Editora: Ateliê Editorial
Páginas: 168
Quanto: R$ 35,00
Onde comprar: LIVRARIA CULTURA
Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. É também
artista plástica. Publicou o livro de contos: A Mulher e o
Cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito Editora,
2006), a novela juvenil: A Linda
História de Linda em Olinda (Editora Escala educacional, 2007)
este último em parceria com o escritor Marcelino Freire e participou, das
antologias Os Cem Menores
Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004) e 35 Segredos para
Chegar a Lugar Nenhum – Literatura de Baixo-Ajuda (Bertrand
Brasil, 2007) entre outras. E-mail: adriennemyrtes@hotmail.com