
Estou de passagem neste mundo,
Mas deixo aqui o registro de minhas palavras.
Eu sou o peregrino do tempo.
quarta-feira, 25 de junho de 2008
sábado, 21 de junho de 2008

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É inefável qualquer tipo de resenha para explicar As Horas Nuas, romance de Lygia Fagundes Telles publicado em 1989 que (mais que merecido) arrebatou o prêmio Pedro Nava de Melhor Livro do Ano. Se é inefável, vou me ater ao próprio com uma ou duas gotas de seu oceano de misteriosa prosa da subjetividade humana.
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“acho deslumbrante ver o Bem e o Mal – com letra maiúscula – confundidos numa coisa só, cozinhando no mesmo caldeirão. (...) Mas parece que a graça está na meia-luz. Na ambigüidade”
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Notou os artifícios? Nem eu. Não precisa, ela é legítima, e assim legitima a literatura brasileira.
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“E os homens e mulheres olhavam para ele com respeito porque a beleza exige respeito”
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E assim nessa ambigüidade, nesse meio tom, que vai indo horas e horas dos personagens profundos dos quais a autora faz uso para expor a alma humana, expõe despudoradamente, e também denuncia a sociedade e a época. O texto é intimista ao extremo e prima pela narrativa arrastada que não cansa, pelo contrário, delicadamente vamos penetrando no cotidiano das personagens redondíssimas e em seus dramas existenciais, desenvolve história e personagens com confissões das mais íntimas, eu disse íntima? Olha eu repetindo. A narrativa briga com narrador para ver quem é mais real ou extraordinário. Rosa Ambrósio, a Rosa Rosae: atriz decadente que se fecha no seu apartamento milionário para se afogar no whisky que ou esconder-se na fumaça dos cigarros inúmeros e lembranças, peças do quebra-cabeça tão intrincado que acaba se mostrando um belo quatro, e que belo quadro temos aqui. Rosona lamenta-se enquanto tinge os pelos pubianos, mas nos conta que nem sempre sua vida foi fútil. Há o passado nas horas. E há também o seu gato narrando o que ninguém sabe e o que ninguém viu, às vezes ninguém o entende, de modo que lambe o cu co

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“Os livros de Lygia, afago com os olhos as páginas tantas vezes soberbas. Releio uma vez mais, palavra a palavra, sílaba a sílaba, saboreando ao de leve a pungente amargura daquele mel”
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SOBRE A AUTORA
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LYGIA FAGUNDES TELLES nasceu em São Paulo, mas passou a infância no interior do estado, onde o pai, o advogado Durval de Azevedo Fagundes, atuou como promotor público. A mãe, Maria do Rosári

Lygia Fagundes Telles teve um filho do primeiro casamento, o cineasta Goffredo Telles Neto, que lhe deu duas netas, Lúcia Carolina Aidar da Silva Telles e Margarida Goreki da Silva Telles. Divorciada, a autora casou-se com o ensaísta e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, falecido em 1977.
Segundo o crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza, no texto "A nova narrativa brasileira", o romance Ciranda de pedra (1954) seria o marco de sua maturidade intel

Membro da Academia Brasileira de Letras, Lygia Fagundes Telles já foi publicada em diversos países: França, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Holanda, Portugal, Suécia, República Checa, Espanha, entre outros –, com obras adaptadas para TV, teatro e cinema.

LIVROS PUBLICADOS PELA EDITORA ROCCO
Ciranda de pedra (romance, 1954)
Verão no aquário (romance, 1963)
Antes do baile verde (contos, 1970)
As meninas (romance, 1973)
Seminário dos ratos (contos, 1977)
A disciplina do amor (ficção e memória, 1980)
Mistérios (contos, 1981)
As horas nuas (romance, 1989)
A estrutura da bolha de sabão (contos, 1991)
A noite escura e mais eu (contos, 1995)
Invenção e memória (ficção e memórias, 2000)
Durante aquele estranho chá (ficção e memória, org. Suênio Campos de Lucena, 2002)
Meus contos preferidos (antologia de contos, 2004)
Meus contos esquecidos (antologia de contos, 2005)
Histórias de mistério (coletânea de contos, 2004)
Conspiração de nuvens
ROTEIRO DE CINEMA
Capitu (1999), escrito em parceria com Paulo Emilio Salles Gomes e inspirado no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, incluído no catálogo da Editora Cosak & Naify.
ANTOLOGIAS
Os melhores contos de Lygia Fagundes Telles, seleção de Eduardo Portella, Editora Global (1982).
Venha ver o pôr-do-sol e outros contos, Editora Ática (1997).
Oito contos de amor, seleção de Pedro Paulo Sena Madureira, Editora Ática (1997).
Pomba enamorada e outros contos escolhidos, seleção de Léa Masima, Editora LPM (1999).
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Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras (1949)
Instituto Nacional do Livro (1958)
Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, por Verão no aquário (1965)
Grande Prêmio Internacional Feminino para Contos estrangeiros, França (1969)
Guimarães Rosa (1972)
Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, Jabuti e APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte, pelo romance As meninas (1974)
PEN Clube do Brasil, para o livro de contos Seminário dos ratos (1977)
Jabuti e APCA, para A disciplina do amor (1980)
II Bienal Nestlé de Literatura Brasileira (1984)
Pedro Nava, Melhor Livro do Ano, para As horas nuas (1989)
Jabuti, Biblioteca Nacional e APLUB de Literatura, para A noite escura e mais eu
Jabuti e APCA, para Invenção e memória (2001)
Prêmio Camões (o maior prêmio da língua portuguesa), pelo conjunto da obra, Portugal – Brasil (2005)
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Ah, acabou de ganhar mais um prêmio quentinho. Não é possível (risos) ela deve ter um quarto em sua casa onde guarda todos esses troféus.
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APCA premia os maiores talentos da arte brasileira em 2007
Escritora Lygia Fagundes Telles vence a categoria na categoria livro de memórias com 'Conspiração de Nuvens' (esse é seu mais recente livro)
Aplaudida de pé, "a grande dama da literatura", aos 85 anos, disse que "as nuvens também conspiram, cuidado!" assim como "outros amigos" para ela poder ser "lembrada pela segunda vez pela associação", que já a havia premiado anteriormente pelo livro As Meninas. A escritora finalizou seu agradecimento na noite de segunda, 5, citando versos de Castro Alves:
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Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!"

domingo, 15 de junho de 2008
Por Kizzy Ysatis





“O aspecto mais notável da aparência do poeta é sua altura, que ultrapassa de muito 1,80m, e o que depois chama atenção são seus cabelos, castanhos-escuros e compridos, caindo sobre seus ombros... Quando ele ri, os lábios se afastam e deixam ver uma fileira de dentes brilhantes, excepcionalmente brancos. A pele do rosto, em vez do tom róseo tão comum nos ingleses, é tão completamente destituída de cor que, dela, só se pode dizer que a cor lembra massa de vidraceiro. Seus olhos são azuis, ou de um cinza-claro, e em vez de serem ‘sonhadores’, como imaginavam muitos de seus admiradores, são brilhantes e rápidos – nem um pouco parecidos como os olhos de uma pessoa dada a devaneios perpétuos acerca de que é inefavelmente belo e verdadeiro. Em vez de pequenas e delicadas, adequadas para cariciar um lírio, suas mãos têm dedos compridos que, quando dobrados, formariam um punho capaz de desferir golpes duros, caso surgisse uma ocasião para que seu dono descesse a esse tipo de disputa... Uma das peculiaridades de seu modo de falar é que ele acentua suas frases a intervalos quase regulares, sem se preocupar com o sentido, talvez como conseqüência de um esforço para ser rítmico tanto na prosa como nos versos.”
Quando lhe perguntaram, na manhã seguinte, se ele tinha alguma coisa a declarar, respondeu: “Nada além da minha genialidade”.

Finalmente, depois de dez anos, o filme foi encontrado. O filme que não queria ser visto foi achado e meu amigo e prefaciador de Diário da Sibila Rubra, Claudio Brites, me presenteou com ele, surpreendendo-me pela película ter aparecido nas prateleiras. Passados dez anos: acho que fiquei tão íntimo de Wilde que o filme acabou não me mostrando aquele Wilde que gostaria de ver, aquele astro que manteve-se de bom humor sem perder o brio diante da chacota dos norte-americanos tão insípidos em sua época. Não ouso dizer que Wilde fosse à frente de seu tempo, a frase já tornou-se obsoleta, mas é certo dizer que ele seja atemporal, coerente para todas as épocas e em todas as épocas irá marcar presença. O filme de Brian Gilbert não está

"Eu sou o Amor que não ousa dizer seu nome".

quarta-feira, 11 de junho de 2008
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O livro velho me contava Dickens e, sem querer, rasguei-lhe um centímetro de uma folha ao puxar, levianamente, uma linha da costura de sua encadernação. Afligi-me de culpa. Ora, pois tinha uma raridade em mãos que exigia carinho; mas o livro amarelo de páginas secas e quebradiças me confortou ao que disse, como o velho solitário quem era, disse-me que gostava de ser tocado de novo. Aprazia-lhe ter as páginas viradas por dedos quentes e, que feliz ele era por ser alisado por meus olhos negros. Disse-me, o tomo de David Copperfield, que preferia mil vezes desmanchar-se comigo a ter de se rachar aos pouquinhos na fria estante. Era seco porque às lágrimas leitoras já não lhe umedeciam as ternas folhas havia cinqüenta anos, nem mesmo o orvalho das gargalhadas a lhe coçar as letras. Por Deus! disse-lhe eu, Vem cá que sou todo seu.
Assim nos amamos durante as noites daquela semana. Ficamos amigos, e ri e chorei com ele até que voltou para estante, por hora satisfeito e refeito e à espera de um novo amante.
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São Paulo, 09 de junho de 2008
segunda-feira, 9 de junho de 2008
– Tinha! Baco se foi. Não o vejo desde a última Páscoa. Tem mais alguma pergunta medíocre para fazer? – diz ele com impaciência, mas agradece intimamente a troca de assunto.
Ela não responde. A dama é como todas de sua linhagem, as que foram, as que são e as que virão a ser. É atraente, ousada e, por vezes, insolente:
– Hum... Sempre bem vestido. “O vampiro Luar vestia-se muito bem, porém sempre aparecia de preto na maioria das vezes”. É assim que está escrito no livro. Bem vestido, porém sempre de luto. Por que será?
– É porque sempre morre alguém.
O tambor que precede chuva retorna; parece querer derrubar a casa inteira, mas tudo ainda é tão cinza. Eles não se movem. São feitos de algo mais sólido: tempo e conhecimento, dor e fúria. A intensa luz de um raio vem para alumiar determinadas e belas expressões. Ela, olhos grandes e atentos; só não brilham mais do que a força de seu ímpeto. Poderia matá-lo ali mesmo somente com a vontade se isso fosse possível e talvez fosse. Ele, estátua de pura brancura e pele reluzente como um elfo de Tolkien, mas com o rosto rijo que afasta para longe todo e qualquer vestígio de humanidade.
A batalha é travada olho no olho.
Pode se apaixonar por quem se odeia? Ela acredita que sim. A sacerdotisa, que de tão perto que está poderia beijá-lo, vira o rosto como se tomasse um tapa, já que as palavras dele, bem empregadas, surtiram efeito. Lembrou-se dos que morreram na estrada dele. Amargurada com o vampiro a feiticeira desce as escadas, devagarinho; arrasta no mármore dos degraus empoeirados a calda aveludada de seu vestido sangrento, obra de Valentino. De sobre a arca apanha o velho livro em percalina verde; grosso e envelhecido. Levanta a barra do vestido para caminhar, estendendo o livro, levando a ele como uma menininha.
– Ei-lo! Toma!
Os olhos do vampiro se preenchem de noite ardem ao vê-lo. Parece uma criança, não sabe se conter. Mas ele se segura em gestos micros a esboçar sentimentos que morrem em seguida ao recuperar o aspecto estatuado da atitude.
– É o diário de Elaine. É o que vieste buscar. Vamos, pega-o.
– Muito fácil. Não compreendo. Por que está me dando?
Ela ri.
– Não te dou, não é teu. Só quero que vejas. Abra-o. Tenta ler.
Ele obedece.
– Sangue de Baco! Mas que diabrura é esta? Está em branco!
Ela bate palma uma vez e diz:
– Enxerga primeiro que depois aparece.
Ele aperta os olhos e se concentra.
– Agora vejo palavras, mas não as compreendo.
– E jamais as compreenderá. E olha que está em bom português.
– Por quê? – pergunta ele, atônito.
Ela toma o diário de volta e se afasta.
– Não faz muito que escureceu e choverá durante quase a noite inteira – diz a dama ao sentar-se na puída poltrona de couro. Aqui, lança um suspiro de cansaço.
– Não me importo com a chuva – ele desdenha e depois esnoba: – Tenho poder sobre as tempestades e não faço questão de interrompê-las. Eu gosto! Agora poupe-me da ladainha e responda minha pergunta, strega!
– Eu sei das tuas capacidades e das tuas fraquezas, strigoi! Não ousa bancar o arrogante comigo! – responde ela com autoridade ameaçadora. Então apanha os óculos na caixa trabalhada sobre a mesa de centro.
– O que fará esta mulher? – ele se pergunta, baixinho.
Ela cruza as pernas com o livro no colo; ele a acompanha com olhos famintos, vendo-a abrir os óculos e os levar à face com aquela seqüência breve e simples de gestos naturais e costumeiros.
– O que vai fazer?
– A única coisa que posso e farei, criatura. Lerei o diário para ti e isso vai além do que mereces.
Enfim ele sorri. Balança a cabeça ao exato tempo em que diz:
– O senso de humor só funciona mesmo quando nos pega de surpresa.
– Não estou a brincar, moço. Desista. Não poderás levá-lo daqui. Nem sequer tocá-lo sem permissão. Atreva-te e o azar é todo teu.
Ele, que sempre ficou à vontade nas casas daquela família, permanece na escada como uma aparição; um monólito tal qual tivesse sido erigido ali mesmo e tem toda a semelhança de um Virgílio de Doré. Ele parece querer ignorá-la; parece que sofre estando na casa, nem ao menos a encara. Contempla e reflete. Divisa a janela, a dança efêmera do cortinado, a chuva que principia...
O que ela ganharia com isso? Surge a dúvida que o imortal não expressou. Mas ela, atenta ao momento, imagina o que pensa e sem saber acerta porque em seus pensamentos diz para si: “Se és tão esperto, por que não descobre?”.
– Não tem motivo para bancar a samaritana.
– Não queres que eu leia, eu não leio. Preocupas-te com o que vou lucrar com isso. Tens medo?!
– Não. Sou precavido. Você não é a primeira sibila rubra que conheço. Não subestimo nenhuma de vocês.
– Claro que não. Gato escaldado...
– As admiro. E respeito também.
– Sem dúvida!
– Senti um tom irônico?
– Escuta. O diário contém um encanto que te proíbe de ler, nosferatu. Somente aquelas de nossa família podem.
– Sobre isso acabei de ficar plenamente interado.
– Entretanto estou ciente das tuas manhas e artimanhas. Logo darias um jeito de saber o que tem aqui escrito.
– E daí...
– E daí que por isso economizarei nosso tempo, lendo de uma vez. Assim paras de me aborrecer. Creio que não te interessas ficar com o diário, queres apenas saber o conteúdo. A não ser que te enganes com o pensamento de que o diário seja um troféu teu. É herança de família. Saberias disso se tivesses uma, mas adoras encostar-te na dos outros.
Ele pisca lentamente. O lábio preto treme.
– Vais prometer deixar-me em paz. Lerei tudo o que nele há, então poderás partir, ainda haverá um breve espaço de tempo antes que se faça dia. Prometo não fazer trapaça. Eu já o li e não sei o que queres descobrir com este diário, boa parte da história já a conheces bem, és coadjuvante. Ainda que estejas no enredo, é uma história de bruxas, escrita por bruxa e narrada por outra. O que dizes?
– Digo, então, que é melhor que comece logo... Bruxa.
sexta-feira, 6 de junho de 2008
parte dois:
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Ela é quase tão alta quanto ele. Magra, mas longe de ser frágil, Alessandra dispensa a benevolência e mostra-se leve. Leve como uma bigorna. Ele aprecia a honestidade dela, mas...
– Pois é. Enganou-se, mulher. Canso-me sim. A propósito, já estou farto!
– O que te trazes a minha casa?
–Você tem uma coisa que eu quero.
– Não sei do que estás falando.
– A senhora sabe, está com ele.
Num ato involuntário, os olhos de Alessandra deslizam na direção do livro sobre a arca. Ela dissimula num átimo, mas não o suficiente para impedir que o vampiro capture o movimento.
– Dê-me o que quero e eu vou embora!
Ela chega mais perto. Sobe um ou dois degraus.
– E o que queres com ele, cadáver continuado? – pergunta ela.
– A senhora não se faça de rogada – ele responde. – A senhora, dona bruxa, sabe das coisas...
– Que bom que sabes que sei. Neste caso foste tolo. Não devias ter te arriscado em vir de lá da terra da garoa, tua terra, até aqui para pedir o que não vais possuir. Não tens receio?
– Receio de quê, de morrer? Já estou morto...
– Não devias ter vindo aqui, não te convidei.
– E daí? Convidaram-me antes.
– Todos que te convidaram já morreram! Por que não vai embora?!
A dama argumenta com sobriedade, mas a visita não se dá ao luxo de contestar. Alessandra está tentando manter a indiferença, a distância; contém também uma certa raiva que tem dele e que cresce aos pouquinhos, mas ela a segura com o punho cerrado. A recupera e espera, sempre. Um momento de fúria pode por tudo a perder.
– É, eu sei mesmo o que queres e o que não queres – ela diz. – Não foi pelo meu sangue que vieste de tão longe.
– De repente... nunca se sabe – ele diz.
Ela sorri.
– Queres o Diário da Sibila Rubra, não é?
Ele não responde. A sala celebra mais uma vez o silêncio. Os olhos dele se cerram nos dela e depois deslizam maliciosos até o livro sobre a arca. O vampiro não se mexe, mas a observa. Impassível. A mente dela investiga, a dele trama. Ele ergue a mão em forma de garra, la mano sinistra, vai rangendo os dentes enquanto fala e se apura um brilho perverso em seus olhos abissais:
– Minha paciência está se esgotando, minha senhora. Já que sabe, dê-me logo.
– Como soubeste do diário?
– Não vou pedir de novo.
Quem mais o estaria ajudando? Ela acabou de chegar da Itália. Como ele soube antecipadamente que ela estaria ali? Como ele a conhece se não lê pensamentos?
– Ora! – ela retruca com ironia. – Para quê a pressa agora, imortal? Deixa-me ver-te. No futuro, voltarei muitas vezes à inércia destes minutos.
Ele não fala e ela supera mais três degraus. Está admirada com ele. Nunca tinha visto um vampiro de verdade. Como é impressionante que seja tão bonito e assustador ao mesmo tempo. É claro que tem medo, mas consegue superar isso com dignidade. Ela é uma feiticeira, foi treinada para tanto. Uma soberana da magia está acostumada com essas coisas. Os estrondos da chuva parecem não mais existir, é outra coisa que acontece ali dentro e que vai além do que insurge lá fora. É mais pessoal... E também é cinza. Como a chuva que emudeceu é cinza. Cinza como também é o silêncio e o tempo que desbota as cores, bem como cinza é o tom da pele branca do vampiro, que é cinza como é a tristeza e como tudo no escuro que esteja empoeirado e cinza.
– Estás mais velho do que consta no diário – ela repara. – Paraste de beber? Morreste com 22, mas aparentas trinta. Sabias que eu li o diário dela? Sei que não costumas beber quando perdes alguém de quem tu gostas. É ruim perder alguém de quem gosta, não é?
Ele cerra os olhos ao ouvir isso, mas segue ouvindo quieto, mesmo que afrontado. Alessandra avança um pouco mais, com insinuante sorriso. E ele lhe afirma, convicto no que diz:
– Pensa que sabe? Você não sabe de nada.
– Ah, sei sim! E como sei – murmura, chegando-se no rosto dele. – Olha: nosso melhor erro é culpar os outros! – ela acusa.
– E nossa pior virtude é sonhar que ela exista – ele rebate.
Estão próximos um do outro. Tão pertinho que parecem namorados.
– Teu coração – ela diz, tocando-o no peito com ternura – não está morto como pensas. Ele é como uma brasa medonha que por um sopro sonha para renascer com ardor, como só quem faz é a fênix. O senhor, que é tão poderoso, tem medo de coisas tão simples... Por que não confessas que fracassaste no amor e não tentas de novo?
Luar engasga, e dá de ombros.
É surpreendente o fato de que a bruxa parece enxergar o seu visitante, tanto e tanto, mesmo por trás da máscara que ele cria. Ele, Luar, o vampiro, reconhece isso e tenta, em vão, não demonstrar o quão constrangido se sente, qual um garoto que é pego se masturbando. No rosto frágil de porcelana, uma expressão rígida mal o disfarça e ele se vê menor na situação embaraçosa.
quinta-feira, 5 de junho de 2008
Prólogo em três partes
parte um:
Uma casa. E nesta casa a força de todas as mulheres do mundo. Uma casa grande, escurecida pela umidade. Tão velha e silenciosa que até parece mal assombrada. O que será que há dentro dela? Por esta casa já andaram boas mulheres, mulheres corruptas e mulheres que foram ou tiveram de ser essas duas coisas. Oh, casa calada que reverbera histórias que ninguém escuta; testemunhos que vagam por ti, nobre casa, gravados no papel de parede. Seus móveis são como ecos virgens de imagens vividas e desenhadas sobre o manto de tal poeira. Seu cheiro manso e por vezes arredio escorre pelos tecidos e reflete em sua textura a consumação dos dias mortos.
Um ano depois da Páscoa de 2002
Chove lá fora. Relâmpagos inundam a casa com seu inferno índigo dos deuses do passado, aumentam sombras, e nos revelam a silhueta da dama herdeira de um segredo. E desses raios reagem trovões. Rugidos que prenunciam indesejada visita. Sussurram para a dama: Ele está chegando! Ele está chegando! Quem? E a pergunta ecoa como um sino que retine: Quem está chegando? Ela desce a escadaria trazendo nas mãos o livro que acabou de ler. Leva os olhos nas janelas. Caminha até o meio do salão; olha a escuridão e espera como nunca antes esperou. Está inquieta, espera o inesperado. Algo inusitado a surpreende: a pedra vermelha no colar de ouro passa a emitir certa luminosidade e isso a denuncia. O coração dispara, galopa no peito. A dama leva a mão no rubi num reflexo condicionado. A luminescência cessa enquanto ágil inteligência percorre a esfera do pensamento na busca da resposta para o curioso sinal. Ela deixa o livro sobre empoeirada arca que jaz em comunhão com outras mobílias tão antigas quanto. Sua mente vagueia, mas não há tempo; no seguinte instante capta o perfume estonteante. E o inesperado acontece.
Entra o corvo.
É ele. É a ave sarcófaga que chega. O pássaro negro plana; passa por ela e não pousa; arremessa-se no alto da escadaria e dali expande uma fumaça branca. Ela não se vira para ver, embora imagine quem seja. Ele está ali! O azul acende a casa e celebra a entidade que se ergue da névoa dissipada. Evanescente.
– Boa noite, Alessandra.
A voz apurada ganha a atmosfera em eco secular e tem qualquer coisa de maldita. Alessandra fecha os olhos e estremece, perde a compostura. O hálito dele é brisa congelada que roça à nuca. Ela respira profunda e lentamente. As velas vão se acendendo por vontade própria e a sala se ilumina. Vira-se para ele com a fé restabelecida desenhada na face.
– Boa noite – corresponde ela com a polidez da cortesia. A saudação, dita com firmeza, vence a casa com magnífico relevo na voz potente. Assim mostra que também tem atitude.
Alessandra ainda está levemente abismada, mas disfarça bem. Aquela pessoa macabra que conheceu no livro jaz encarnada à sua frente. E a descrição do livro, por mais nítida que fosse, não lhe faz jus.
– O vampiro Luar, eu presumo.
– O próprio! Minha fama me precede.
– Pudera. Trazes o mal na bagagem.
– E olha que a carga é grande. Um trem.
Ele vai descendo as escadas como um imperador que recepciona seus comensais. Que olhos grandes ele tem, pupilas dilatadas como as de um gato noturnal.
– A senhora me desculpe por ter entrado sem bater.
O arquétipo do herói romanesco. Isso a encanta.
– Não foi muito educado da tua parte, mas aceito as desculpas.
Tem toda a semelhança de um Don Juan de Byron, de um conde Lopo de Azevedo, com a capa preta cobrindo-lhe apenas um dos ombros e o excesso dela vem dobrada no antebraço.
Ele estaciona no meio da escadaria para admirá-la. Madura na idade e enxuta na beleza preservada, Alessandra exibe prodigiosa cabeleira, cuja tonalidade ele reconhece e vibra, pois qual uma cachoeira de fogo, ela despenca em pencas de cachos largos que atraí os olhos e aviva a alma; vastíssima e sobrenatural como a dele que, de diferente, só tem a cor.
– Não estava preparada para receber-te.
– Sorte minha.
Há o silêncio.