Estou de passagem neste mundo,

Mas deixo aqui o registro de minhas palavras.

Eu sou o peregrino do tempo.


quinta-feira, 17 de setembro de 2009


RESENHA DUPLA


Quando um novo livro é lido, eu penso: haverá, a bem da verdade, idéias novas que são originalmente produzidas no senso criativo de um ser humano ou tudo que é criado em verdade é uma poda a bel-prazer do suposto criador para que o que já existe persista em sua existência, mas com um contorno próprio de quem lhe leva a autoria?A estrutura da pergunta que me fiz é a mesma dos questionamentos de Elaine de Voltaire, personagem principal do romance Diário da Sibila Rubra: O retorno das bruxas e personagem secundária do romance Clube dos Imortais: A nova quimera dos vampiros, como prova de que, tendo acabado de ler tais dois livros na seqüência supramencionada, a forma dos íntimos questionamentos da sibila rubra em tela se fez presente em minhas próprias inquirições.Ambas as narrativas, escritas por Cristiano Marinho, mais conhecido pela alcunha de Kizzy Ysatis – segundo ele, o prenome oriundo das sílabas desconexas de uma donzelinha que não pronunciava o nome de nascença do escritor corretamente e o sobrenome proveniente de uma deliciosa fragrância – trazem consigo a figura mitológica do vampiro como personagem fascinantemente primordial para o desenrolar das tramas.

Em tempos de crepúsculos instauradores de vampiros cintilantes à forma de purpurinas de estátuas vivas e bebidas escarlates cujo sumo faz sucesso dentre os parasitas de pescoços por ter alguma conexão com sangues de supostas vítimas, produzir uma narrativa sedutora de vampiro não parece ser grande coisa e tentar ressuscitar a figura do sanguessuga-mor nos faz lembrar que ainda há autores que persistem no erro de centralizar vampiros repletos de clichês em seus textos tragicômicos, seja contemplando o vampiro como pomposos mortos-vivos que vivem a se lamentar pela imortalidade enquanto saboreiam cigarrilhas e taças de absinto, seja encarnando-o como a real figura de livros de terror em que o vampiro não se trata de um galã da mais alta garbosidade, mas de um horrendo sugador de sangue que é, de fato, o que sua natureza demonstra.
O fato é que, excetuando-se os clichês sugeridos acima, a indagação persiste: seriam os livros de Ysatis mais do mesmo? Moda passageira, cópia de Bram Stoker, carona dos wolverínicos vampiros de André Vianco ou, quem sabe, um aspirante a Anne Rice tupiniquim?
Nenhuma das quatro hipóteses.
O que Cristiano faz é da mais densa originalidade, ou, retifico, se não exatamente original no sentido da utilização das tradicionais figuras da bruxa, do vampiro e do lobisomem, é, sim, excelente no que concerne aos enredos bem elaborados, aos personagens minuciosamente relatados, à História nacional que magicamente se coaduna com a ficção.
Li, no último ano, a primeira das obras escritas, Clube dos Imortais. A princípio, como chato que tendo a ser quando aponho as mãos em qualquer nova obra, a primeira reação veio salpicada com as ardências pimentosas dos preconceitos: ai, romance juvenil sobre vampiros de novo, confesso que essa foi a primeira idéia que engendrei na mente. Luciano, peça essencial para o desenrolar da trama, menino de assoberbada beleza andrógina, Cláudio, seu melhor amigo, exato duplo oposto ao primeiro, crê em tudo que as evidências não explicam, Jéssica, a namorada mui amada que se desfaz de qualquer resquício de consideração para com Luciano, uma vez dele rompendo relações em virtude de paixões inexplicáveis por outro cidadão, Marta, a enamorada não-publicamente-declarada do primeiro rapaz, Selma, melhor amiga de Jéssica, aparentemente de futilidade imensurável, e Miguel, o típico atleta descerebrado.
De outra forma, se esse azedume se criou, docilidade se construiu quando me apercebi da estrutura formal do romance: metáforas belíssimas, passagens digressivas elaboradas de forma magistral, linguagem floreada à maneira da segunda geração do Romantismo: morbidez, angústias e dores existenciais, características essenciais ao desenvolvimento da personagem do vampiro. E o vampiro que reina na obra de Kizzy é um ser mítico. O autor não faz simplesmente encaixar um sanguessuga inescrupuloso sem qualquer ponderação nos capítulos, ele cria uma ascendência e origem para todo e qualquer vampiro, o qual, se antecipa, provém de duas possibilidades: por conversão divina e é exatamente aí que julgo se encontrar a nova quimera dos vampiros, pois Kizzy cria uma origem bíblica para o ser vampírico, sendo despertado à imortalidade por um anjo de real valor; e a segunda maneira, da forma tradicional, vampiro criando vampiro, mas com um originalíssimo porém: só se transforma em vampiro se evocado pelo primeiro e se o transformado ansiar se tornar um. Ou seja, exclui-se a possibilidade viral do vampirismo, uma vez não sendo doença ou pandemia.

Entretanto, não é só a criação donde é oriundo o vampiro que me deixou em fascínios. Aqui se amalgama a fantasia vampiresca com a História brasileira, pois o vampiro em tela nutre imensas obsessões por um poeta imortal de nome Álvares de Azevedo, aquele literato que se banhou de glórias ao escrever, entre outras obras, a magnífica Noite na taverna. O vampiro encontra em si um apaixonamento sem tamanhos, sempre concretizado e se renovando com o passar dos anos, desde um baile de carnaval no reinado de D. Pedro II, passando pelas arcadas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, pelo Cemitério da Consolação e pelo Teatro Municipal de São Paulo e em nenhum lugar estacando.Crer que Clube dos Imortais é tão-somente mais um romance juvenil de vampiros é um erro grotesco. A juventude contemporânea se demonstra como real imagem espelhada da juventude de outra época, que o diga o vampiro, que passa o romance inteiro se asseverando desta noção e dela fazendo surgir precioso resultado.

Posteriormente, vim a ler Diário da Sibila Rubra, que explica com mais detalhes o desejo do vampiro pela figura de Álvares de Azevedo, embora o enfoque primordial deste romance seja calcado na já mencionada Elaine de Voltaire, futura matriarca das sibilas rubras, uma antiga ordem de bruxas, cujo tom rubro das melenas as caracteriza. Não obstante, quando de seu lançamento, tenha o autor dito que a ordem de leitura de ambos os livros não seja essencial para o entendimento dos romances, sugere-se aqui que Diário da Sibila Rubra seja lido primeiramente, excetuando-se seus prólogo e epílogo, que são mormente entendidos após a leitura do Clube dos Imortais, de forma que aquele é, cronologicamente, o primeiro a ocorrer na sucessão dos fatos.Ler o Diário foi-me de maior prazer. Escritores evoluem com o passar dos anos e do exercício da escritura e isso se evidencia no amadurecimento contido nesta narrativa, que é totalmente fragmentada, volta-e-meia ensejando o retorno a capítulos anteriores.
No entanto, a união das irmãs bruxas e de Thomas, o único rapaz, é feita de forma tão delicada, fazendo tudo criar ar de lenda, que, aliás, é o mote inspirador para as ocorrências do livro, parecendo-me que toda e qualquer tentativa de sobrenaturalidade paira no âmbito dos contos e causos populares que são incansavelmente contados no interior do país, com todos os amedrontamentos e fascinações que lhes são íntimos.

A temática bucólica encanta: aparições no meio das florestas orvalhadas, línguas de bruxas que se metamorfoseiam em pererecas para funções malévolas, encantamentos que invocam forças da natureza, amores incompreendidos entre mariposas e chuvas catárticas, que são trazidos à baila com ternura e desejo inflado.Aí repousa a origem de Fausto, o lobisomem que aprende a obedecer ao mestre vampiro, Vivian, a matriarca das sibilas rubras, Elaine, a autora do diário, guria que luta bravamente para domar suas emoções e anseios, e o próprio vampiro, que acalanta atemorizando.É assim que se conclui o que se sabe: a Literatura Fantástica Brasileira tem nome e competência. E se não se pode dizer isso de todos os escritores que a tanto se propõem, ao menos em Kizzy Ysatis encontra uma excelência literária de cujo impulso criador não se escapa jamais.

Um comentário:

Eric disse...

rolou uma capa alternativa de Sibila ali, só para colecionadores, ou foi impressão? ;) Bjs.