
Eu a própria noite
Pobre casa descascada que não vê pincel há quatorze anos, enegreceu na chuva de quatorze dias. Há pouquíssimos minutos para o ângelus, estou despertando; tragando assim apático na varanda de casa. Observo o pátio lá embaixo e vejo Kira ansiosa por afagos; a labradora preta é gulosa e quer que eu a esfregue em todo seu robusto comprimento. O Jack, esparramado na caixa d’água vizinha há muito parou de se lamber; cansou-se, e agora descansa. Passarinhos com rabo de tesoura namoram nos fios da rua quiescente e seu piar sucessivo parece infinito e oportunamente alude a um abrir-fechar de tesoura. Tchéc, tchéc, tchéc... Eu por inveja me irrito com eles. Na encosta do condomínio as árvores balançam airosas num momento quase idílico. Espremo a bituca. Roberto comprou-me o cinzeiro, mesmo eu fumando menos ele quer a mureta livre de resíduos tabagistas. Sento-me na poltrona e miro o monitor com cisma. Ainda branco. Beberico o capuccino agora frio, o momento se estende. Branco ainda. Penso em revisitar páginas antigas mas rapidamente abandono a idéia. Anoitece. A inquietação aumenta. Sinto raiva e angustia. Culpa? Só amanhã. Medo nunca. Quando vem, me escondo ou tento sair da frente, sei lá. Algo me espera lá fora. O campo de batalha físico. Levo a mão nas cicatrizes das velhas guerras de outrora e sempre. E então me dou conta que meu lugar não aqui esquentando a poltrona com o rabo. Grades são para os covardes, sejam eles bandidos ou cidadãos. São os sentidos que me tornam fecundo, injetam vida no meu criar: barulho, desejo, álcool e ilusão. Percepção, decepção e então a efemeridade luminosa, a solitude acompanhada e mais uma vez a ilusão. Eu portanto respondo ao chamado noturno. Me transformo e saio. O ardil que me corrói cavo eu mesmo aqui no peito, me serve de adubo e munição porque ou planto, ou disparo fogo. A pressa nunca me ajudou e o tempo é meu aliado, pois como às andorinhas nada me falta que não me seja de mais valia que a própria liberdade.