
Aqueles que habitam o Paralelo Noturno
II - Hakozen
Às 18h00 começa a escurecer em São Paulo. A hora é crítica. O trânsito engasga com mil engarrafamentos. Ônibus e trens disparam cheios, e centenas de milhares de cidadãos estressadíssimos viajam para casa depois da longa jornada de trabalho. Este inferno ocorre todos os dias. Os vampiros despertam; os lobisomens aguçam seus sentidos; as bruxas, ao meditar, respiram profundamente enquanto os sinos de algumas igrejas badalam o ângelus. É quando as sete portas do mistério se abrem. Os anjos atravessam. E o reino do Paralelo Noturno tem início. Este inferno reabre todos os dias.
Os motoqueiros, assim como os ciclistas, têm a vantagem de poder ultrapassar carros parados no trânsito. Na Avenida Lins de Vasconcelos, um ciclista avançou sobre a calçada, chegando ao endereço pretendido. O homem, beirando os 30, desmontou da bicicleta, removeu o capacete e tocou o interfone do edifício. Arfava de cansaço e suava de ansiedade. Não avisou quem ia visitar, nem sequer sabia se a velha amiga ainda morava no local. Mas soube no seguinte instante, quando o porteiro o atendeu pelo interfone:
— Pois não?
— Vou ao apartamento 77. Mas antes eu queria saber se...
— Seu nome é Claudio?
— Isso mesmo.
Enquanto o portão da garagem se erguia, Claudio balançava a cabeça sorrindo.
Sétimo andar. O post-it na porta indicava outro rumo: “Querido, estou no telhado. Amasse o papelzinho e suba!”
Claudio nem se atentou ao laranja-fogo no céu. Assim que saiu no terraço, buscou pela amiga e a avistou mais adiante, perto do para-peito, a admirar o pôr-do-sol. Ela estava de costas mas Claudio a reconheceu pelo cabelo. Não pelo corte (antes comprido e agora curto), mas pela cor. Aquele tom inconfundível. Quando ele a viu pela última vez, havia somente uma mecha rubra. Agora, todo cabelo era vermelho e sua postura também era outra. Talvez não fosse mais a mesma mulher. E na verdade não era. Claudio queria ver seu rosto e até concordaria com certo poema de Henriqueta, se o conhecesse. Ao menos um trecho: Quem viu o rosto da Sibila? Quem se arriscou ao fundo do poço à procura de humanos traços? Talvez ela não tenha rosto: é múltipla inumerável.
— Marta, nem preciso mais ligar pra você.
Marta falou com distância, levemente melancólica:
— Não se pode surpreender uma sibila rubra.
— Quanto mais a matriarca, estou certo?
— Sim, e sou a última... mas isso também não importa agora.
Ela se virou para vê-lo. Abriu os braços e um sorriso:
— Olha só você, Claudio. Há quanto tempo!? Vem cá e me dá um abraço.
— Uau! Como você mudou!
Ele caminhou em sua direção mas brecou ao notar o círculo branco no chão em torno dela; em seguida, o pequeno caldeirão de ferro com três pés, liberando uma chama azul e tímida, meio aflita com o vento; e, por fim, um hakozen, que Claudio deduziu ter sido usado como altar improvisado, cujo interior provavelmente escondia objetos mágicos recém utilizados ao invés de comida japonesa.
— Anda praticando, hein?!
— Posso dizer que me formei recentemente, mas nada que o Harry Potter não faria.
Claudio, que até então sorria, logo ficou tenso. Nunca presenciara a amiga manipulando magia. Obedecendo a um gesto gracioso da bruxa, a chama se apagou e um vento rasteiro varreu com força o sal que antes formava o círculo. Então ele se acercou para se abraçarem.
— Hum. Você ficou musculoso, mas ainda fuma.
Ajeitando os óculos, Claudio a encarou com uma careta debochada:
— Adivinhou isso também?
— Não, querido. Isso se descobre com um abraço e um cheiro. Me responda uma coisa: mudei pra melhor ou pior?
— Pra melhor.
— Ainda bem, senão te transformava num sapo!
Marta estava brincando, mas Claudio olhou preocupado para o hakozen. Ela notou e levou a mão no queixo, envergonhada.
— Ah, Claudio, me desculpa, nem te ofereci nada. Você deve estar com fome. Tem dois sanduíches e um suco de caixinha dentro da mesinha japonesa.
Ele a encarou outra vez, agora com espanto:
— O quê? Trouxe sanduíches dentro do hakozen?
— Sei que adora comida japonesa. Eu até que tentei enrolar uns temakis mas ficaram um desastre. Ah, mas o que esperava, um banquete de boas vindas?
Aliviado, Claudio balançou a cabeça:
— Não, esquece. Eu viajei. Vou pedir uma pizza, temos que conversar serio.
— Eu sei.
Ela o abraçou novamente e começou a chorar. Ele não suportou e chorou também. Pela primeira vez, puderam expressar suas tristezas um ao outro. Era uma tristeza que pesava neles desde que eventos ocorridos anos atrás transformaram drasticamente suas vidas e separaram seus caminhos.
[Continua na próxima terça]
LEÃO NEGRO
A busca pelo vampiro Luar
Um romance de KIZZY YSATIS