Estou de passagem neste mundo,

Mas deixo aqui o registro de minhas palavras.

Eu sou o peregrino do tempo.


segunda-feira, 9 de junho de 2008

DIÁRIO DA SIBILA RUBRA
O Retorno das Bruxas
Luar segurando orquídea, por Lese Pierre
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Prólogo em três partes
parte TRÊS:
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– Onde está teu gato preto? Tinhas um, não tinhas?
– Tinha! Baco se foi. Não o vejo desde a última Páscoa. Tem mais alguma pergunta medíocre para fazer? – diz ele com impaciência, mas agradece intimamente a troca de assunto.
Ela não responde. A dama é como todas de sua linhagem, as que foram, as que são e as que virão a ser. É atraente, ousada e, por vezes, insolente:
– Hum... Sempre bem vestido. “O vampiro Luar vestia-se muito bem, porém sempre aparecia de preto na maioria das vezes”. É assim que está escrito no livro. Bem vestido, porém sempre de luto. Por que será?
– É porque sempre morre alguém.
O tambor que precede chuva retorna; parece querer derrubar a casa inteira, mas tudo ainda é tão cinza. Eles não se movem. São feitos de algo mais sólido: tempo e conhecimento, dor e fúria. A intensa luz de um raio vem para alumiar determinadas e belas expressões. Ela, olhos grandes e atentos; só não brilham mais do que a força de seu ímpeto. Poderia matá-lo ali mesmo somente com a vontade se isso fosse possível e talvez fosse. Ele, estátua de pura brancura e pele reluzente como um elfo de Tolkien, mas com o rosto rijo que afasta para longe todo e qualquer vestígio de humanidade.
A batalha é travada olho no olho.
Pode se apaixonar por quem se odeia? Ela acredita que sim. A sacerdotisa, que de tão perto que está poderia beijá-lo, vira o rosto como se tomasse um tapa, já que as palavras dele, bem empregadas, surtiram efeito. Lembrou-se dos que morreram na estrada dele. Amargurada com o vampiro a feiticeira desce as escadas, devagarinho; arrasta no mármore dos degraus empoeirados a calda aveludada de seu vestido sangrento, obra de Valentino. De sobre a arca apanha o velho livro em percalina verde; grosso e envelhecido. Levanta a barra do vestido para caminhar, estendendo o livro, levando a ele como uma menininha.
– Ei-lo! Toma!
Os olhos do vampiro se preenchem de noite ardem ao vê-lo. Parece uma criança, não sabe se conter. Mas ele se segura em gestos micros a esboçar sentimentos que morrem em seguida ao recuperar o aspecto estatuado da atitude.
– É o diário de Elaine. É o que vieste buscar. Vamos, pega-o.
– Muito fácil. Não compreendo. Por que está me dando?
Ela ri.
– Não te dou, não é teu. Só quero que vejas. Abra-o. Tenta ler.
Ele obedece.
– Sangue de Baco! Mas que diabrura é esta? Está em branco!
Ela bate palma uma vez e diz:
– Enxerga primeiro que depois aparece.
Ele aperta os olhos e se concentra.
– Agora vejo palavras, mas não as compreendo.
– E jamais as compreenderá. E olha que está em bom português.
– Por quê? – pergunta ele, atônito.
Ela toma o diário de volta e se afasta.
– Não faz muito que escureceu e choverá durante quase a noite inteira – diz a dama ao sentar-se na puída poltrona de couro. Aqui, lança um suspiro de cansaço.
– Não me importo com a chuva – ele desdenha e depois esnoba: – Tenho poder sobre as tempestades e não faço questão de interrompê-las. Eu gosto! Agora poupe-me da ladainha e responda minha pergunta, strega!
– Eu sei das tuas capacidades e das tuas fraquezas, strigoi! Não ousa bancar o arrogante comigo! – responde ela com autoridade ameaçadora. Então apanha os óculos na caixa trabalhada sobre a mesa de centro.
– O que fará esta mulher? – ele se pergunta, baixinho.
Ela cruza as pernas com o livro no colo; ele a acompanha com olhos famintos, vendo-a abrir os óculos e os levar à face com aquela seqüência breve e simples de gestos naturais e costumeiros.
– O que vai fazer?
– A única coisa que posso e farei, criatura. Lerei o diário para ti e isso vai além do que mereces.
Enfim ele sorri. Balança a cabeça ao exato tempo em que diz:
– O senso de humor só funciona mesmo quando nos pega de surpresa.
– Não estou a brincar, moço. Desista. Não poderás levá-lo daqui. Nem sequer tocá-lo sem permissão. Atreva-te e o azar é todo teu.
Ele, que sempre ficou à vontade nas casas daquela família, permanece na escada como uma aparição; um monólito tal qual tivesse sido erigido ali mesmo e tem toda a semelhança de um Virgílio de Doré. Ele parece querer ignorá-la; parece que sofre estando na casa, nem ao menos a encara. Contempla e reflete. Divisa a janela, a dança efêmera do cortinado, a chuva que principia...
O que ela ganharia com isso? Surge a dúvida que o imortal não expressou. Mas ela, atenta ao momento, imagina o que pensa e sem saber acerta porque em seus pensamentos diz para si: “Se és tão esperto, por que não descobre?”.
– Não tem motivo para bancar a samaritana.
– Não queres que eu leia, eu não leio. Preocupas-te com o que vou lucrar com isso. Tens medo?!
– Não. Sou precavido. Você não é a primeira sibila rubra que conheço. Não subestimo nenhuma de vocês.
– Claro que não. Gato escaldado...
– As admiro. E respeito também.
– Sem dúvida!
– Senti um tom irônico?
– Escuta. O diário contém um encanto que te proíbe de ler, nosferatu. Somente aquelas de nossa família podem.
– Sobre isso acabei de ficar plenamente interado.
– Entretanto estou ciente das tuas manhas e artimanhas. Logo darias um jeito de saber o que tem aqui escrito.
– E daí...
– E daí que por isso economizarei nosso tempo, lendo de uma vez. Assim paras de me aborrecer. Creio que não te interessas ficar com o diário, queres apenas saber o conteúdo. A não ser que te enganes com o pensamento de que o diário seja um troféu teu. É herança de família. Saberias disso se tivesses uma, mas adoras encostar-te na dos outros.
Ele pisca lentamente. O lábio preto treme.
– Vais prometer deixar-me em paz. Lerei tudo o que nele há, então poderás partir, ainda haverá um breve espaço de tempo antes que se faça dia. Prometo não fazer trapaça. Eu já o li e não sei o que queres descobrir com este diário, boa parte da história já a conheces bem, és coadjuvante. Ainda que estejas no enredo, é uma história de bruxas, escrita por bruxa e narrada por outra. O que dizes?
– Digo, então, que é melhor que comece logo... Bruxa.

6 comentários:

Somerset disse...

Até tentei encontrar alguma resenha de Guia-mapa Gabriel Arcanjo, mas infelizmente não encontrei.

Ahh..
O prólogo é magnífico, com certeza o livro inteiro será mais uma obra de arte de um autor muito talentoso. O mundo inteiro deveria conhecer esse talento Kizzy.
Abraços!

Anônimo disse...

Difícil vai ser esperar até agosto!

Darkisses,
Lu

Kizzy Ysatis disse...

Mari, já ouviu essa mulher falar? Procura ela no Youtube que você acha.

Obrigado pelo elogio, e saiba que não tenho a menor dúvida de que o mundo, seja hoje ou amanhã, esteja eu caminhando ou deitado, eles conhecerão.

bjs
....

Lu

Pelo menos para nos vermos não demorará até agosto. Nos veremos esta sexta-feira treze no lançamento do livro de Arlindo Gonçalves na livraria HQ Mix.

até lá.

kisses for kizzy, sempre grato a todos que visitam o blog. Desde os que postam até os que espiam.

Anônimo disse...

AHHH deuso meu do ceú teu! Escuta, esse é o texto que tu leu pra mim naquele dia na casa do Zed, não é? porém acho que tu modificou algumas coisas, pelo que me recordo!
clap clap clap (ovações ao meu amigo, amoreco doce, imortal de alma, porém com o coração humano)
Beijocas
Lizy Tequila

Anônimo disse...

Me ha encantado el prólogo, es muy inquietante, estás deseando saber qué ocurrirá después. Un besote muakss.
Raquel

Kizzy Ysatis disse...

Sim, Lizy, moreco, não é o mesmo texto que te li no Zed. Na ocasião o texto era verde.

Agora o texto foi relido e reescrito várias vezes por meses a fio, depois de um período de descanso e esquecimento, até chegar nesta versão. É o que sempre digo: "Escrever é a arte de reescrever"

Maravilha que tenha gostado. (suspiro)
beijos

....

Raquel Guimes! Astaroth.

Seguro que te vás a mirarlo después. Queda tranquila. Yo he de matar dos tigres con un solo puñetasso, je je je.
Muchas gracias por tu visita a lo blog y venga siempre. Te quiero mui bien. Besoste a ti también.
MUUAAAAKS!