Estou de passagem neste mundo,

Mas deixo aqui o registro de minhas palavras.

Eu sou o peregrino do tempo.


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A roda da foice
Primeiro encontro
parte um: MOSAICO

Sufocado por bagunça e sujeira; vítima de estranha angústia – estranha como só angustia pode ser – Kizzy está em seu escritório. Repare que ele tem trinta e um anos, veste um manchado roupão azul e, sentado na poltrona diante do computador, ensaia um texto. Os fones de ouvido com chiado desfiam o piano de uma trilha sonora triste. Pára ao mergulhar a colher no pote de sorvete de chocolate. Segue escrevendo, pára e sai no quintal para fumar no escuro olhando a lua das quatro e meia da madrugada.
Sofre de um bloqueio criativo desde o término de seu romance, Diário da Sibila Rubra. Traumatizou-se se espremendo para reescreve-lo tantas foram as vezes que achou necessário para que ficasse ao seu gosto e assim ser publicado no pouco tempo que dispunha; enforcado com o prazo, ignorando a cobrança da editora que queria o livro a tempo para a Bienal. “Prefiro não lançar, a entregar uma porcaria escrita às pressas como outros fazem por aí”, defendia-se, mas terminou o livro do jeito que queria. Achou as soluções certas e contou com a leitura simultânea de um amigo que criticava seu livro em tempo real. O lançamento foi um sucesso, mas Kizzy não se recuperou desde então. Bloqueio. Impotência mental. Faz quatro meses? Acredita que criou uma espécie de fobia. Odeia metáforas escatológicas mas realmente parece alguém com prisão de ventre, porque não consegue expor uma coisa que lhe é natural, mas não é merda que quer lançar ao mundo, são flores. Para ele o mundo já está encardido demais, assim como seu escritório, a casa inteira e seu roupão. “Sim”, pensou, “minha casa é o retrato do mundo atual, um ciclone de informação que em sua maioria não nos serve para nada a não ser para tomar tempo. Perdemos tempo com tanta utilidade inútil que nos esquecemos do essencial. E o que é essencial? O essencial é invisível para os olhos, dizia Saint-Exupery”.
E agora? Não consegue escrever, foi consumido pela preguiça. Quer falar sobre o encontro da Roda da Foice, um encontro com amigos escritores que aconteceu horas antes, mas agora está cansado demais. Ficou, horas, emperrado na releitura e reforma do novo romance que co-escreveu, A Morta Vaidosa. Desliga o computador e vai dormir. Na verdade está com medo, está inseguro. Quer ser tão bom quanto os colegas. No fundo acredita nisso mas então o que o impede? “Talvez esses colegas possam me ajudar”, pensa com a cabeça no travesseiro, “Alguns deles são meus amigos, outros acabei de conhecer mas parecem legais...
Meu cabelo está fedendo a cigarro”.
O piano triste e intenso continua na cabeça mesmo sem os fones.
“Todos são legais no primeiro dia, quero ver depois”. O pensamento se desvia para um turbilhão de cobranças que o assombram todos os dias. Renega tudo ao pensar no amor, mas logo adormece e sonha. O sonho é misturado como todo sonho é... É um mosaico.

5 comentários:

Anônimo disse...

Uma frase do glorioso Fernando Pessoa para ilustrar esses maravilhosos devaneios:

"O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto."


Darkisses,
Lu

Claudio Brites disse...

parte 2, parte 2, parte 2!!!
com foto.

Claudio Brites disse...

ou melhor, pensando bem, não. espere mais um pouco. deixe ainda no suspense.

Unknown disse...

Bloqueio...
Palavra assustadora para todo o escritor...
O cursor no início da página em branco, piscando e piscando, simplesmente parece rir da sua cara. Se estiver silêncio, você realmente pode ouvi-lo gargalhar.
Então quando o sono vence e você deita a cabeça no travesseiro, esse silêncio do meio da madrugada é o som mais alto que você já ouviu. Ele quer te deixar acordado. E você só quer esquecer que não criou nada de bom.


Sensação horrível!

Rachel de Oliveira // Rafael Andrietta disse...

Você é bom naquilo que escolheu.

Deixe apenas seus dedos conduzirem sua mente, preenchendo o mórbido branco do Word.

Inspirações, veem e vão como tudo na vida.