Estou de passagem neste mundo,

Mas deixo aqui o registro de minhas palavras.

Eu sou o peregrino do tempo.


domingo, 14 de dezembro de 2008

Thaissa (sorriso de leitora é o sorriso do autor)
Um Trecho do Diário da Sibila Rubra.
Na narrativa abaixo, a matriarca das sibilas rubras enfrenta um vampiro.


De volta de suas lembranças, Vivian sentia a gelada brisa noturna com um alívio à própria soledade, pois no coração pungia a nostalgia de um futuro esquecido. De olhos fechados ela sorria, e ao abri-los descobriu-se de volta à atmosfera cemiterial. Bartolomeu precisava saber onde cavar.

— Quáli, minha sinhá? Dize quáli campa tá o vumpiro pra mó de nós cavá.
— Cavai a campa do falecido Antônio.
— Mági esse é o falicido esposo de sinhá Ana.
— Exatamente.

Os primeiros minutos foram angustiantes. O ar estava pesado, o frio era de cortar a alma, aquela escuridão engolidora e a constante sensação de desconforto e perigo: estigmas do medo. Bartô reclamou. Por que não deixar para fazer aquilo de dia, mas a mãe respondeu severa: “Porque não é coisa que se faça. Pode gerar controvérsia. É melhor que ninguém saiba”.

O Morro do Ribeirão erguia-se imponente aos céus catarinenses. Era uma sombra majestosa e gigantesca, tão ameaçadoramente escura quanto calada. Como o resto do mundo. Só o barulho da pá e da enxada fazia-se ouvir na terra molhada... O menor ruído poderia ser detectado pelos ouvidos atentos da matriarca; qualquer movimento, por mais furtivo que fosse, seria denunciado por olhos injetados de atenção e medo. Queria terminar logo e ir embora, relaxar na poltrona diante do calor da lareira, e então dormir. Mas demorava... Demorou. Até que finalmente atingiram a madeira do caixão. Vivian mandou remover a tampa.

— Tá bem pregada, sinhá.
— Quebrem-na.
— Mas, mãe, se seu Antônio estiver aí, ele não vai pular na nossa garganta?
— Provavelmente.

Thomas fi cou chocado com a frieza de sua mãe.

— Levanta a inxada, seu Thomas, pra mó de acertá o bicho se ele avança em nós. Eu vô quebrá a tampa c’a pá. Mági munto cuidado, pra mó de num me acertá c’o a inxada.
— Pode deixar, Bartô.

Ele bateu até quebrar. A face distorcida da morte apareceu para eles em avançado estado de decomposição. Um cheiro detestável desprendeu- se do cadáver do colono açoriense provocando geral repugnância. O fedor praticamente os empurrou para trás. Bartolomeu soltou um jato de vômito. Eles urravam e tossiam enquanto tentavam desesperadamente sair do buraco. Arrastaram-se para fora da cova, não muito funda, engatinhando-se, e enfim sentaram com as faces retorcidas pelo asco indescritível e sem conseguirem tirar as mãos da boca.

— Mãe?

Thomas não a viu. Estavam sozinhos. A matriarca sumira. Levantaram- se e olham por todos os lados.

— ALI! — gritou Bartô, mais pelo susto do que pelo alerta, apontando para o fundo da igreja. — Vi um vurto! Uma coisa se mexeno no iscuro.

Armaram-se com a pá e a enxada e foram na direção das sombras, margeando a parede da igreja até os fundos. Lá eles ouviram uma voz gutural falar com outra pessoa dentro da sacristia.

— Bebeeeeee...
— Não quero, Antônio.

Reconheceram a segunda voz como a de Vivian e se apavoraram. Thomas ia gritar, mas com gestos o capataz fez com que se calasse e, vagarosamente, espiaram pela porta. Havia um ser de costas para eles do outro lado da sacristia: de frente para a mesa onde a mãe se achava sentada. Ele estava nu entre as pernas dela numa posição de cópula, o que trouxe mais terror a Thomas. Mas o ser não a violava sexualmente, a saia do vestido não estava levantada. Ele a forçava a fazer outra coisa. Com a mão no rosto de Vivian, o ser tentava fazê-la beber da taça que Bartolomeu vira anteriormente na mesa. Ela desviava o olhar da criatura que tinha a cara muito próxima de si, seus olhos se fi xavam na direção da porta e por essa razão ela viu o filho e o empregado a tempo de acenar com a mão, por trás do vampiro, para acalmá-los. E depois, com o dedo, apontou para o armário. Cuidadosamente Bartolomeu entrou. Chocado, Thomas examinava a apavorante entidade que obsidiava sua mãe. O ser tinha a pele azulada e viscosa, chupada pelos ossos que pareciam saltar. Era corcunda. Completamente liso de pelos e cabelos. Orelhas pontiagudas e braços muito longos. Pelo corpo deslizava uma porção de bichos escuros de aspecto asqueroso. Enxergou morcegos grudados como aranhas, com unhas e dentes cravados na pele esbranquecida. Arrastavam-se pelo corpo como ratos: uns se desprendiam voando e outros apareciam pela porta para vir grudar nele, como fazem as abelhas. Thomas chorava encarando a mãe que retribuía as lágrimas. Aquele monstro com a garra encardida apertando o rosto dela forçando-a a engolir alguma nojeira que estava no cálice, mas ela não bebia, sequer olhava para o vampiro que insistia:

— Bebeeeeeeeeee...
— Não, Antônio... Eu não vou beber... Não quero... Por favor, não insista.

Bartolomeu tinha o armário aberto e não sabia para qual item a patroa apontava. Ele mostrou peça por peça até entender que ela deu um positivo quando ele mostrou o crucifixo. Então ela reagiu. Deu com a mão derrubando o cálice no chão, espalhando o conteúdo vermelho escuro. Thomas entrou gritando com a enxada em punhos e a desceu sobre a criatura que, num golpe poderoso e ligeiro, quebrou a enxada no cabo. Com outro extraordinário movimento, agarrou o rapaz para si e o lançou sobre a mesa, avançando para abocanhá-lo.

— PÁRA, ANTÔNIO! — a mãe deu o grito providente.

O vampiro interrompeu-se com as babas a pingar no rosto de Thomas, que se tremia todo. A criatura virou-se a ela com lentidão. E a sibila mostrou-lhe o crucifixo dizendo:

— Olha para Ele, Antônio. Como podes fazer isso com Ele? Olha para Ele, Antônio. Olha para Ele! Vês como chora por ti?

Um remorso desmedido se apoderou da criatura que não suportou olhar para a cruz. Antônio deu um guincho tão estridente que estilhaçou vitrais.

— Lembra-te de como gostavas Dele? Como tiveste coragem de trair a tua fé?

O grito agudo continuou. O morto-vivo ocultou a cara horrenda com as mãos na expressão da dor e, os morcegos, passaram a abandonar- lhe o corpo até não sobrar mais nada da criatura. A igreja ficou empesteada de morcegos. Todo mundo correu para fora no meio daquele farfalhar medonho. A Mãe Vermelha entregou o crucifixo na mão do filho.

— Pega, Thomas! Se ele aparecer, mostra isto.

E correu. Todos correram feito loucos. Debatendo-se com a pá na mão, Bartolomeu tentava desesperadamente sair daquela pavorosa nuvem de morcegos. Corria sem saber para onde, mas a mãe sabia exatamente aonde ia. Com a barra do vestido levantada, foi o mais rápido que pôde na direção da cova. Thomas correu atrás como se lhe desse cobertura, então ela puxou seu punhal de prata do bolso do vestido...

— SINHÁ, NÃO! — gritou Bartlomeu.

Mas ela não parou de correr até saltar no buraco erguendo o punhal em pleno vôo. Pronto! Os morcegos se desfizeram em areia preta. Thomas e Bartô, já estarrecidos, ficaram ainda mais espantados, e correram para a cova; e lá estava a matriarca agachada sobre o caixão, com as duas mãos no cabo do punhal enterrado no coração do cadáver putrefato de Antônio.

4 comentários:

iarashi disse...

Adoooro.

Um dos meus livros preferidos.

Somerset disse...

O livro é incrível! Nem dá para escolher uma melhor parte, mas esse confronto é de tirar o fôlego.

Má Caldas disse...

Maravilhoso! Como a Mariana disse, não dá para escolher uma melhor parte!

Kizzy Ysatis disse...

Iarashi, Mariana, Má Caldas

Fico muito grato com a visita e as postagens

Abração!