Estou de passagem neste mundo,

Mas deixo aqui o registro de minhas palavras.

Eu sou o peregrino do tempo.


sábado, 30 de janeiro de 2010


Eu a própria noite


Pobre casa descascada que não vê pincel há quatorze anos, enegreceu na chuva de quatorze dias. Há pouquíssimos minutos para o ângelus, estou despertando; tragando assim apático na varanda de casa. Observo o pátio lá embaixo e vejo Kira ansiosa por afagos; a labradora preta é gulosa e quer que eu a esfregue em todo seu robusto comprimento. O Jack, esparramado na caixa d’água vizinha há muito parou de se lamber; cansou-se, e agora descansa. Passarinhos com rabo de tesoura namoram nos fios da rua quiescente e seu piar sucessivo parece infinito e oportunamente alude a um abrir-fechar de tesoura. Tchéc, tchéc, tchéc... Eu por inveja me irrito com eles. Na encosta do condomínio as árvores balançam airosas num momento quase idílico. Espremo a bituca. Roberto comprou-me o cinzeiro, mesmo eu fumando menos ele quer a mureta livre de resíduos tabagistas. Sento-me na poltrona e miro o monitor com cisma. Ainda branco. Beberico o capuccino agora frio, o momento se estende. Branco ainda. Penso em revisitar páginas antigas mas rapidamente abandono a idéia. Anoitece. A inquietação aumenta. Sinto raiva e angustia. Culpa? Só amanhã. Medo nunca. Quando vem, me escondo ou tento sair da frente, sei lá. Algo me espera lá fora. O campo de batalha físico. Levo a mão nas cicatrizes das velhas guerras de outrora e sempre. E então me dou conta que meu lugar não aqui esquentando a poltrona com o rabo. Grades são para os covardes, sejam eles bandidos ou cidadãos. São os sentidos que me tornam fecundo, injetam vida no meu criar: barulho, desejo, álcool e ilusão. Percepção, decepção e então a efemeridade luminosa, a solitude acompanhada e mais uma vez a ilusão. Eu portanto respondo ao chamado noturno. Me transformo e saio. O ardil que me corrói cavo eu mesmo aqui no peito, me serve de adubo e munição porque ou planto, ou disparo fogo. A pressa nunca me ajudou e o tempo é meu aliado, pois como às andorinhas nada me falta que não me seja de mais valia que a própria liberdade.

5 comentários:

Alessandra Safra disse...

Grades são para os covardes, sejam eles bandidos ou cidadãos.
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ótima frase, sublevar com palavras. Guerra branca.

bjs

Martarella Sirena disse...

Nunca estarás solo mientras los que te queremos pensemos en ti constantemente. No te olvides de caminar siempre por las sombras para que te protejan.

Unknown disse...

O momento passa na vida. A vida nos passa a perna.Os terrores vão embora apesar de deixaram seus rastros. O que nos resta? Somente aquilo que perpetuamos, porque na verdade tudo é efêmero e no peneirar dos grãos, só os que sobram são os mais robustos, os que realmente são importantes, o resto é resto. (Simone Anton)

Unknown disse...

tudo isso é saudades... nao fique assim... agora estou por perto.
Beijos suadosos
Leo

Bárbara Calian disse...

Depois de ler, nem sei oq falar. me comoveu oq vc escreveu, foi tão forte e ao mesmo tempo emocionante.
Adoro tudo que vc escreve, mesmo sendo um desabafo.